
- Em quem vou colocar a culpa pelo salto? Escrever bilhete suicida pra quê, se não tenho ninguém que o leia?... se não tenho a quem dar satisfação?...
- Só o vazio em minha mente e em meu peito...
- Não tenho memórias tristes ou boas para recordar, que me impulsionem a subir, nem a descer...
Passo a passo, degrau a degrau, cada vez mais perto do céu, cada vez mais perto do Inferno...
A escada que lhe levaria ao topo, não o levaria para baixo...
- Eu poderia estar subindo de elevador, mas poderia encontrar alguém no elevador que me dissuadisse do ato treslocado... a escada é mais solitária e mais poética...
- Ah, como é bela a vista daqui de cima, esse vento que me assanharia o cabelo se eu não fosse calvo...
- Cuidado ao subir no pára-peitos, se eu escorregar e me machucar não terei forças para o salto...
De uma janela no prédio da frente, um garoto tetraplégico, sentado em sua cadeira de rodas olha para cima e vê o homem... e acompanha com seu olhar incrédulo o vôo vertical, radical, último...
No caminho da descida o homem vê o menino, e vê que uma lágrima descia em sua face pálida de nunca ter sentido o sol - a pólio o havia acometido na primeira infância... o menino viu o homem passar rápido-raio por ele... o menino balança a cabeça dizendo não, meneando-a lateralmente enquanto a água salgada lhe escorria pelo rosto...
- Por que ele chora, se nem me conhece?... ah, se eu pudesse retornar ao topo, perguntaria a ele por que ele chora por algém que não conhece!!!
Olha para cima, e vê o roso do menino ficar vermelho de choro, mas a descida é rápida e não vê mais nada...
O vidro fechado da janela do menino não lhe permite ouvir o barulho surdo do contato do corpo contra o chão...
E o menino chora a morte de quem não conhece, e chora a sua triste vida, que também desconhece.