segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Na construção

"Operário" - Cândido Portinari

Antônio levantou-se às cinco da manhã, abraçou Alvinar com tanto ardor naquela manhã, com tanta paixão como se fosse a primeira, ou a última vez. Alvinar entregou-se despudorada, sabendo que apesar de seus trinta e dois anos de idade, Antônio seria o último a possuí-la como mulher.
Ela o sentiu magnífico como uma máquina: enérgico, rijo, rápido em seus movimentos.
Beijaram-se ardentes, como se pressentissem o último beijo. Ela se sentia a única mulher dele, não a primeira, a única. Esquecera-se de Margarida, de Delícia, de Delorges, de Clelea e sua irmã Claura, de Liliose, Libera, e todas as demais.
Amor feito, caminho seguido, não sem antes um grande e ardente beijo. Como o cartão que ele batia ao entrar na obra, tinha que selar a saída de casa com um beijo, lógico! Senão, se preparasse para chegar em casa e encontrar um barraco feito:
- Por que você não me beijou quando saiu de manhã? Tava pensando em quem?, etc, etc.
Enquanto a mãe de seus filhos lhe preparava a mesa do café da manhã, ainda com as pernas trôpegas, Antônio fora beijar seus pequenos Antinar, Alvônio, Antinavônio, Alvinatônio e Aanário, o caçula de meses de nascido.
Cada um lhe era único, cada um lhe era a alegria e a preocupação, o motivo de regresso do trabalho, o motivo do trabalho, a terra firme que visitava todas as noites antes de dormir e todas as manhãs antes de partir ao labor. Sabia que todos lhe deixariam um dia, a ele e a Alvinar, mas também sabia que no dia que quisessem retornar, a porta estaria aberta.
Com a marmita de bóia-bem-quentinha, que estaria bem friazinha na hora de comer, atravessou a rua com aquele passo de quem não sabe olhar para cima, de quem não sabe encarar aos outros, cambaleando suas pernas pelo cansaço, logo chegou à construção.
Subiu a construção com a destreza de quem já tem anos de ofício na construção civil, nem parecia que há poucos dias aquela parede era um misto de areias e água. Junta massa, cimento, areia e água; liga a argamassa, junta com tijolos e rápido ergue as paredes sólidas, num desenho lógico, dois-um-dois, fazendo a mágica da união das paredes com as colunas, com as vigas, com os tetos, umbrais das portas... paredes flácidas com a massa molhada, sólidas quando a massa secar, indestrutíveis para os moradores, quando ficarem rebocadas.
Antônio pensou como o operário em construção, de Vinícius. Negou-se pensar, pois via seus olhos lacrimejarem, “como eu irei explicar pros colegas porque tô chorando!!?”
Seu olhar corria o horizonte e viu num instante de tempo todos os prédios, todas as obras, as casas, praças, museus, escolas, igrejas e ruas... o tráfego intenso formado por pequenos carrinhos que mãos como a sua ajudaram a criar. Criaram, como ele criava agora aquele prédio.
Vertigem, vertigem... resolveu sentar-se um pouco para o café.
Sentou-se tranqüilo, como se não precisasse levantar depois; ficou de cócoras como um pássaro e tranqüilo como um príncipe. Pegou seu feijão-com-arroz que trouxera de casa e sonhou-se nababo com uísque, caviar, que só conhecia pelo nome. O cansaço e a fome que o cansaço traz fizeram-no engolir rapidamente a comida, como uma forrageira devora as palhas e as tritura. Tomou seu gole de q-suco como se fosse champanha, engoliu o líquido como se tivesse sede de náufrago.
Brincou com os colegas ao se levantar, ouvindo aquele velho radinho que nos domingos de tarde lhe narravam o futebol e de noite lhe embalavam o sono. Saiu e tropeçou num cabo de aço que não percebera havia deixado pendurado, para puxar o próximo elevador que iriam colocar na obra de mais de dez andares.
Tropeçou, saltou, voou.. flutuando, sem jeito de escapar, Antônio viu o chão se aproximando rapidamente, braços abertos como um pássaro; vento no rosto e silêncio, como num sábado na praia, flutuando como se soubesse o que fazia, como se tivesse todo o poder nas mães.
No chão, Antônio encontrava-se agora torcido, múltiplas fraturas, disforme como um pacote vermelho, sem nada dizer, sem grito soltar.
Morreu Antônio, como milhares de antônios, no meio da rua, sozinho. Morreu no meio da rua atrapalhando o tráfego e os motoristas insensíveis que reclamam o engarrafamento: “Logo agora, que estávamos prontos para sair da cidade e irmos curtir o final de semana na praia!!”

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