quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

LENTO



Hoje acordei letárgico, moroso, tão lento que se o anjo da morte me visitasse hoje, eu só chegaria no além daqui a uma semana... Nem melancólico, nem triste, lento. O café cairia em câmara lenta na xícara, o pão me pareceria mais macio, se eu tomasse café com pão pela manhã...

Depois de trinta e cinco anos acostumado a acordar com Yaperi do meu lado, sua ausência de hoje me fez pensar que esta ausência pode se prolongar pelos anos que me restam.

Há pessoas que se queixam da relação, dizendo que estão acostumados um com o outro, como se ter costume fosse ruim.

Acho muito gostoso ter o costume de acordar do lado de Yaperi, o costume de discutir com ela sobre o futuro de nossos dois filhos, quatro netos e o bisneto que vem aí...

Gosto do costume de sentir aquele cheiro de sua pele depois do banho, e de reconhecer seus perfumes, de com os olhos fechados tateando-a saber que roupa usa, ou não usa...

O que mais me agrada nesses 35 anos de casados é o costume do sabor de sua comida e os elogios quando quem cozinha sou eu. O costume do beijo que já sei como agrada e como não agrada, o costume de descobrir gradativamente em que época do mês ela é carinho, ou carente, ou uma dinamite, ou pimenta...

Acostumei-me a saber o que quer mesmo sem pedir, pelo olhar, pelo respirar, pelo não olhar, pelo que diz e pelo que cala... foi bom acostumar-me com as consultas mensais ao diabetólogo, e de alegrar-me pelos elogios que o Dr. Zuírio lhe fazia pelo cuidado à saúde.

Também acostumei-me com as cadeiras nas calçadas, a prosa sem fim, histórias infindáveis e infindas que contávamos um ao outro, como respostas dos livros que líamos sozinhos para termos o que comentar... acostumei-me com os papos com o pastor Zunulato e com o padre Valindo, até com aqueles tristes testemunhas de jeová que vinham dizendo pregar o evangelho do reino, mas que saíam sem dizer nada do tal reino se comprássemos uma "A Sentinela", e de seus horários sempre incômodos, pelas manhãs, na hora em que fazemos o almoço...

Lembrei-me da festa de casamento de nossos mais que amigos Venelina e Mikolas, que se casaram na praia e a festa foi um baile à fantasia... e tomei meu porre mais ridículo... festa de três dias na Caponga...

Levantei-me e de pijama, ainda, fui regar o jardim, as roseiras de Yaperi, as nove horas de Yaperi, as palmeiras de Yaperi...

Inconsolável, não ousei chorar... Reli o bilhete deixado ontem sob minha fronha, em que Yaperi me dizia no mais violento haicai que já li, um versinho: Ao resto de minha vida eu vou.

Este pequeno verso estava em uma foto em que Yaperi, não mais a minha Yaperi, mas a dela própria, abraçava seu personal trainner, de vinte anos de idade.

Ao ler aquilo, corri ao meu porão, fiz rápido um vudu do casal, amaldiçoei o amor, bendisse o ódio, espraguegei o casamento, abençoei a viuvez, e fui dormir.

Hoje, como sempre, acordei às sete horas, liguei a televisão para as notícias locais matinais: "grave acidente na marina em Santos, uma lancha vira em alto mar e a Srª. Yaperi Dradavicius e um jovem chamado Dédulo Gaturano morrem afogados, seus corpos foram encontrados nus no camarote da lancha do casal Vencri e Yaperi Dradavicius..."
. Voltei pra cama e num misto de alegria, solidão, vingança e dever cumprido, passei o resto do dia meio-lento, pensando como o amor é traiçoeiro, como não conhecemos ninguém, nem nós mesmos: como minha mulher foi me trocar por aquele rapazote, esquecendo tudo de tão belo e importante que vivemos?

Eu conheci papai noel

Dizem que estes seres fantásticos como coelho da páscoa, saci pererê, boitatá, bicho papão, fada madrinha, anjo da guarda, deus e papai noel não existem... bem... vou contar pra vocês que alguns deles existem, sim... Eu andava em minhas noites insones, como quem vai a-lugar-algum, sentei-me num banco da Praça da Estação em Fortaleza e fiquei vendo o movimento daquelas mulheres de poucas roupas, para fazer propaganda do corpo, via também algumas vítimas do álcool que os seduziu até transformá-los em sobras de seres humanos. Vi também uma combi branca chegar, abrirem sua lateral e cinco a seis pessoas descerem e começarem a servir caldo. Mais tarde, soube que uma dessas instituições religiosas que procuram agradar a Deus dando esmolas - ou as dão como forma de sublimar seus pecados, mas que expiá-los -, sempre distribui caldo nas praças da capital alencarina aos desafortunados que vagam nas noites. Vi um homem, cuja barba grande lembrava um misto de Santa Clauss e de Marx, mas sua roupa rôta lembrava coisas que pequenos burgueses não gostam de lembrar, veio com andar sóbrio, pegar alguns poucos pratos de sopa. Alguns, sim, quantos, não sei. Vi aquela criaturinha de menos de 1,6 m de altura, vindo, pegando dois pratos, voltando; logo, vinha novamente, pegava dois pratos de sopa e sumia na escuridão da ladeira que desce ao IML... repetidas vezes fez isso... Após a aproximadamente a oitava viagem de vai-vem deste homem, resolvi segui-lo de longe, mais com o olhar que com as pernas, para ver o que fazia... Sim, era exatamente isso que vocês imaginam, ele levava sopa para um grupo de crianças e mulheres que se envolviam em trapos debaixo de umas rampas de acesso aos fundos do IML. Mas não eram só mulheres e crianças, tinham também alguns gatos e alguns cães... Paciente, o homem trazia aquele banquete... Na noite seguinte, por curiosidade, fui à praça, e vi o tal homem fazendo a mesma caminhada... passei algumas semanas observando e verifiquei que a clientela dele modificava-se, haviam rostos novos, alguns não estavam mais, outros sumniam por uns dias, depois retornavam... só a figura daquele homem barbado não mudava, nem sua diligência em atender aqueles lá da rampa do IML. Intrigado, procurei conversar com ele, ele se negou, ao perguntar seu nome: - Noélio dos Santos E percebi que ser Noel, é ter espírito natalino, espírito de quem quer que todos tenham vida e um dia de hoje melhor que o de ontem