sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Talício, velho amigo e suas prosas

Conheci o velho Talício já velho, cabelos bem nuvens esvoaçantes, olhões azuis-celestes, senso de humor como ninguém... soube mais tarde que fora ruivo, com cabelo bem vermelho mesmo, e isso lá pros idos dos 1915, quando nascera, lhe fazia uma festa com a mulherada. Vou contar algumas desse velho amigo. "êta porcaria... fui tangê o gado e me perdi nesses cafundó... merda! peguei o bezerro, mazanoiteceu e num tenho a mínima idéa donde eu tô... arre égua, tô areado... deixa eu olhar pro céu, há de cê que eu cunheça arguma instrela... putaria, sô, é tudo iguá... "ô sono bom, nem parece que dormi nesses cascái, agor avô procurá um lugar... "treis dias! treis dias e treis noite e num vejo um siná de gente, meu Deus, quié isso!?... Esse chêro... é... é lenha queimando, fazeno armoço... huuuummm veim dalí, tá gostoso..., lá istá o teliado da casa... - Ô gente boa, tem arguém im casa? ... - Bom dia madame, é q eu tava tocano gado e me ariei, tô a quatro dias e treis noites vagando como arma nesse mundo, sem ver viva alma... com uma sede da moléstia e com uma fome de tomar sopa de cascái... ... - A sin-óra tem arguma coisa prêu me dá de cumê? ... - Tem pobrema naum, pode butar assim mermo... ... - Sim, mar num é o mermo fejão? Qui importa si tá acunzinhado, cru ou desincuano... eu quero assim mermo... ... - Não, sin-óra, pode acolocar assim mermo, o chêro tá muito gostosu, o gosto deve tá bom tamém... ... - Huuuummm, ô comida gostosa... pois lhi digo, sin-óra, quano chegá em casa, vô dizê pra min-a muié que só vô cumê agora fejão desincruano, num quero mais sabê de fejão marduro, nem bem acozinhado... lá em casa vai ter pra mim agora é fejão sem sal e desincruano, isso é que é comida de rei... ... - Obrigado sin-óra pela comida, apois agora me diga, onde nós estamo? ... - Poço do porco? már é mais de treis légua da fazena carrapinho... ... - A sin-óra coniece a fazena carrapicho? ... - Naum, nãu moro lá nãu, moro no Córgo dos Mato, pero do Córgo das Moça, perto dos Imbuiá Grande ... - É longe... mas intonce eu vô ino que têin-o que chegá lá... inté pra sin-óra... "Valia mer Deus, já tá anoiteceno... mar tô perto... olha lá a casa dos Berzantino... é tô im casa... - Muié cheguei.... carma gente... ô fiiarada boa... carma papai só tava no mei do mundo ... ... ... - Muié, a aprtir de agora só vô cûme fejao desincuano, você vai cunzinha o fejão pra mim e quano tivé desincruano você me traga na mí-a tigela... isso é que é comida boa... ... - Como eu discubri isso? foi assim, eu... ... - Brigado muié... éra isso que eu quiria... hum... Ééééérrrghh, qui coisa már ruim, é o cão que come isso!!! ... - Esse é o fejão desincruado muié?? ... - E pur quê tá tão ruim assim? ... - Porque a fome é o melhó tempero, pai...

TESTAMENTO


Não me tenham por má, vocês não sabem o quanto sofri para conquistar estes pequenos bens que agora disponho neste testamento para minha família. Fui viúva três vezes; e confesso:

que Zódino, grande alpinista, achou de subir o Aconcágua sem a minha autorização, serrei-lhe as cordas, para que ao perceber que não pudesse escalar sem cordas voltasse para mim... perdoem-me a minha insegurança dos vinte e dois anos de idade. Perdoe-me Zoriula e Zoé pela morte de seu pai;

que não agüentava (adoro os tremas, dão um ar requintado às palavras), sim, não agüentava as noites sem fim de Vidomar, aquele alcoólatra inveterado... coloquei veneno em todas as bebidas da casa e lavei as taças em que ele bebia em uma solução para disfarçar o sabor... era pra ele não querer beber, pena que esqueci de lhe avisar...Maria Cuba, Marinoza e Mérico, perdoem-me o esquecimento que levou a óbito seu pai;

que não fui à ópera naquela noite com raiva de Olestário. Ele me flagrou conversando com Farkas... e deu a maior surra no pobre e desafortunado mecânico, que tinha um jeito rude e macio de falar com as mulheres, que tinha uma mão forte e um dorso duro, que agüentava tapas, beliscões e mordidas, sem reclamar, que tinha força para levar uma mulher no cólo e ao céu quantas vezes ela quisesse em uma noite... Farkas jurou que se vingaria incendiando o teatro com nós três dentro... ah, issome deu uma indisposição... que tomei um calmante e dormi a noite inteira.

Eu não sou má... sou sofrida...

Se Púlia estiver presenta na leitura desse testamento quero que ela saiba que as quinze tentativas de abortá-la e que lhe deixou cega de um olho, sem orelhas, com o lado direito praticamente paralítico e sem condições de nascer cabelos, não foi porque sou má... eu só achaa que não teria condições de sustentá-la... e que mentem quando dizem que lhe joguei num latão de lixo, numa lagoa, dentro de uma jaula de lobos... eu!?... você era muito franzina, mas forte e fiava saltando de meus braços o tempo todo, e como eu estava fraca devido às tentativas frustradas de aborto e você me caía dos braços o tempo todo.. sei, sei, você tinha duas semanas de nascida, mas já era muito forte...

continua...