quinta-feira, 10 de julho de 2008

ATENDER BEM SEMPRE


Meu plantão foi cruel, mais uma vez, mas amo o que faço, por isso aguento firme as cinco cirurgias durante a madrugada, fora aquela fila de parideiras, que, puxa vida, nunca diminui, só aumenta...
Em meus plantões diários faço uns três partos, mas nos noturnos... ontem foram nove... nove moleques... mas a atenção é dada a cada um como se fosse único, porque é único - cada um nasce com sua identidade, uns choram muito, uns só soluçam... uma me chegou tão fraquinha, asfixiada, deu trabalhinho, mas tá bem...
Entre 3 e 3 e meia olhei pro anestesista:
- Eu não aguento mais, vou tirar uma soneca... me chame se o mundo cair ou em 15 minutos, por favor, o que acontecer primeiro...
Ele riu:
- Vá doutora, você está a cinco noites seguidas de plantão, não sei como agüenta!
- Eu não agüento, vou morrer lá no repouso...
Durmi meus 15 minutos de beleza, levantei, escovei os dentes, enchi os pulmões de ar, coloquei meu riso nº 16 (meus risos são numerados de acordo com o animal do jogo do bicho, 16 é leão - altivo, inabalável, forte e bonito) e saí pelos corredores... dei uma olhadela lá pra fora e vi tumulto... "não, definitivamente, não quero saber", fui ao refeitório tomei uma aguazinha e fui à recepção... chega uma ambulância com dois rapazes baleados... assumi junto com minhas anjas, se minhas enfermeiras não fossem tão unidas e sincronizadas eu teria muito mais trabalho... comecei o atendimento, um faleceu, o outro levei ao centro cirúrgico...
Duas balas no tórax... uma na nuca... às 4 horas e 50 minutos resolvi dar uma paradinha...
É minha filosofia de trabalho, quando atendo feridos à faca ou à bala, ou acidentados, não querer saber o que aconteceu, pois minha função é cuidar deles e não julga-los, para isso tem gente especializada.
Fui tomar uma água, e escutei as auxiliares de enfermagem conversando sobre o sequestro das filhas do gerente do banco...
- Meu Deus, violentaram as meninas, mas a polícia resgatou elas e prendeu os caras depois de um tiroteio...
- Onde foi isso, meninas?
- Doutora, foi aqui, inda agora, deu na rádio que uma menina tá ferida e a outra violentada...
- Meu Deus...
- Esse rapaz que a senhora tá operando foi o que violentou a menina...
- É doutora, a menina ta lá fora, ele arrancou o dedo da menina e abusou dela...
Olhei para a mesa cirúrgia e tenho que confessar, senti uma repulsa tão grande àquele rapaz, que em meu íntimo tive vontade de "errar" no atendimento, de uma forma tão irremediável que ele fosse a óbito...
Voltei à mesa e quando deu 5 horas e 15 minutos, mandei que o levassem à sala pós cirúrgica e fui atender outros pacientes...
O que mais me fez concluir o atendimento com perfeição foi me lembrar das histórias que contam de estupradores em prisões... tomara que ele se recupere logo e possa ser sair do hospital e ir para o presídio.